Nós trazemos um impacto

Guilherme Piton
8 min readOct 12, 2020

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O Sermão da Montanha (1890), de Carl Heinrich Bloch.

Texto:

13 Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. 14 Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; 15 nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. 16 Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus. (Mateus 5 ARA)

Quem somos nós? Qual é a nossa missão? Na vida de igreja, respondemos isso de várias formas. Ao ler essa passagem, temos a tendência de achar que ela trata de ganhar influência ou de gerar um tipo de influência nas pessoas. Tem quem ache que a missão da igreja é só isso mesmo: influenciar. Será que nossa missão é apenas isso?

Quando eu escolhi essa passagem bíblica, uma música do Crianças Diante do Trono me veio em mente. Ela diz assim:

Acenda a luz na escuridão

Deixe a sua luz brilhar

Não esconda não

Deixa iluminar

Jesus é a luz que está em seu coração

Eu fiquei refletindo muito nessa música durante a semana e fui muito confrontado pelas Escrituras. Eu achava que ser sal e luz é só isso mesmo: deixar a luz brilhar. Eu achava que eu me tornaria sal e luz quando eu quisesse ou que ser sal e luz é apenas tomar algumas atitudes. Ao ler o sermão do monte, entender a mensagem de Jesus as coisas mudaram um pouco.

Vamos viajar um pouco para esta passagem. Vamos imaginar Jesus no monte, ensinando seus discípulos assim como Moisés subiu ao Sinai para instruir o povo de Israel na Lei de Deus e aí vamos começar a compreender porque ele nos chama de sal e luz.

Quero trazer três algumas reflexões sobre isso.

Jesus se dirige a um povo (v. 13, 14)

O discurso de Jesus, seu sermão, é dirigido a um povo específico: os seus discípulos. Ele diz que eles são o sal e a luz do mundo. Aqueles que largaram as suas redes para segui-lo (4:18–22), aqueles que são mansos, que reconhecem sua pobreza, que têm fome e sede de justiça, que se alegrarão nas perseguições (5:3–12). Aqueles que seguem os seus mandamentos (5: 17–48) são os seus discípulos, ou seja, nós.

Ser sal da terra e luz do mundo não é um status que os discípulos conquistam ou que pode rejeitar. Quando se tornam seguidores de Jesus, quando estão nEle que é a luz do mundo, eles se tornam luz (João 8:12). Jesus não escolheu o templo, a torá. Ele ignorou as opções judaicas existentes e escolheu os seus próprios discípulos para cumprirem a sua missão.

De novo, lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida. João 8:12

Mas qual é a missão da igreja? A missão dos discípulos é a missão de Israel: ser luz para as nações, “mediar” a presença de Deus como sacerdotes, representantes de Deus na terra. A missão se inicia em Gênesis (1: 26–27) , passa por Noé, Abraão, o povo de Israel (Ex 19: 5–6) e chega em Jesus que cumpre o papel dado ao seu povo de ser luz para as nações sendo o novo Adão (Rm 5: 12–21). Por meio de Jesus, a igreja ganha esse papel (1 Pe 2: 9–10).

Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel. Êxodo 19:5–6

Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia. 1Pedro 2:9–10

2. O povo de Jesus é sal (v. 13)

Sal e luz são de figuras de impacto. O sal impacta as carnes, a luz impacta nas trevas. Os discípulos de Jesus são pessoas que trazem um impacto através de seu testemunho, suas ações.

Existe um ponto importante nesse texto, que nos passa batido: a palavra que Jesus usa para “terra” não é a mesma que denota “mundo”. A palavra aqui fala da terra de Israel. Ao que tudo indica, o que Jesus está falando aqui para a sua audiência primária (discípulos judeus) é que sua missão se iniciará no meio dos judeus. A metáfora de “luz do mundo” vai antecipar a missão para os gentios. Sabemos que foi assim quando olhamos para Atos: a missão se inicia em Jerusalém com judeus e se expande para o mundo gentio.

O sal era extremamente importante para a vida de Israel, fazia parte dos sacrifícios (Lv 2:13), era conservante de alimentos também. Ele usa essa metáfora dizendo que os discípulos salgam a terra. Mas perceba que no texto, Jesus não se detém a falar da utilidade do sal. Ele fala da inutilidade: se o sal perde o seu sabor, deve ser jogado fora e pisado pelos homens. Ou seja, se o discípulo deve testemunhar de Jesus e se essa é sua missão, quando ele deixa de fazer isso, está negando sua identidade, sua essência, sua ligação com o próprio Cristo.

Toda oferta dos teus manjares temperarás com sal; à tua oferta de manjares não deixarás faltar o sal da aliança do teu Deus; em todas as tuas ofertas aplicarás sal. Levítico 2:13

Dietrich Bonhoeffer diz:

Mas o sal que se torna insípido já não servirá para salgar. Tudo pode ser salvo pelo sal, mesmo o elemento mais estragado; só não há esperança para o sal que perdeu o sabor. Esse é o outro lado da discussão. É o juízo ameaçador que paira sobre a Igreja dos discípulos. A terra deve ser salva pela Igreja dos discípulos, mas a Igreja que deixa de ser o que é, está irrecuperavelmente perdida.” (Bonhoeffer, Discipulado, Mundo Cristão, edição Kindle, posição 1210)

3. Os discípulos são a luz (v. 14–16)

Quando Jesus chama os discípulos de luz do mundo, temos três imagens a respeito da: a cidade, a lâmpada e a luz como boas obras. A luz não pode ser ocultada, ela impacta o ambiente. Assim, as obras dos discípulos impactarão as trevas. Quando Jesus fala isso, remete ao profeta Isaías, quando Deus fala que Israel iluminará as nações (Is 51:4, 60:2–3). A partir disso percebemos que “luz do mundo” não é uma metáfora de que a igreja deve exercer influência mas sim que a missão de Deus vai alcançar todos os povos. Jesus falou disso no capítulo anterior ao citar a Galiléia dos gentios.

Porque eis que as trevas cobrem a terra, e a escuridão, os povos; mas sobre ti aparece resplendente o Senhor , e a sua glória se vê sobre ti. As nações se encaminham para a tua luz, e os reis, para o resplendor que te nasceu. Isaías 60:2–3

‘Mas para a terra que estava aflita não continuará a obscuridade. Deus, nos primeiros tempos, tornou desprezível a terra de Zebulom e a terra de Naftali; mas, nos últimos, tornará glorioso o caminho do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios. O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz. Isaías 9:1–2

Mas Jesus é direto também: a luz que os discípulos possuem deve brilhar através de boas obras, para que o Pai seja glorificado. A igreja é convocada para testemunhar com suas palavras e ações, para fazer com o que o Reino de Deus se torne visível para quem ainda não o viu. Enquanto o Reino não é consumado, a igreja o anuncia e vive a sua realidade. Olhem para as bem-aventuranças: é por meio do amor, da mansidão, da paz, do cuidado que as pessoas verão a Jesus.

A partir da leitura e exposição do texto podemos fazer algumas aplicações para nossas vidas:

  1. Não podemos negar a nossa identidade. Quando Jesus diz que somos sal e luz, ele não está dando um imperativo, ele está afirmando. Nós estamos em Cristo e nele fazemos parte da grande história que se desenrola desde o Gênesis: a missão de Deus em reconciliar consigo mesmo todas as coisas. Por meio de Jesus, testemunhamos desta realidade. Sem Jesus, não somos nada. John Stott diz que quando o sal deixa de ser sal, ele se torna poeira.
  2. Todos nós temos uma vocação. Quando Jesus indica que somos sal e luz, ele está afirmando que todos os seus discípulos desempenham um papel em sua missão. Precisamos nos empenhar em testemunhar, em descobrir qual vocação Deus nos deu. Não há ninguém sem utilidade no Reino. Se achamos que não temos utilidade, se não testemunhamos e vivemos nossa vocação, nos tornamos alvo do juízo de Deus.
  3. Não estamos sozinhos. Temos uma tendência de individualizar esse texto, mas Jesus se dirige uma comunidade. Precisamos entender que somos um corpo e que só assim demonstramos o caráter de Jesus. Ele não fez várias igrejas, ele fez uma igreja. O reino de Deus, a salvação se torna palpável quando as pessoas que estão ao nosso redor observam nossos relacionamentos como igreja, se demonstramos aquilo que dizemos com as pessoas de nossa comunidade de fé.

Chegando no final, queria que nós viéssemos a refletir em uma coisa: o que temos feito? A quem temos dirigido os nossos esforços? Nossas palavras têm desembocado em ações? Se Jesus nos chamou de sal e luz, se ele deu a sua missão a nós, é necessário refletir sobre o que temos feito com as palavras que ele nos deixou.

Jesus proferiu essas palavras que lemos a pessoas consideradas indignas para os judeus. Os fariseus nunca veriam um pescador como Pedro como alguém digno de ser luz. Mas Jesus foi na contramão dos judeus e chamou essas pessoas para o seguirem, ele disse que delas é o reino e que elas receberão o que pedirem. Essas pessoas somos nós: não éramos povo de Deus e nos tornamos povo.

Quem são as pessoas que devemos impactar com nosso sal e luz? A lista é imensa! Existem tantas pessoas que perderam seus familiares nessa pandemia, perderam seus empregos, seu sustento, estão passando fome. Existem pessoas dentro de nossas famílias cheias de problemas, chorando, precisando do Salvador, do seu consolo. Precisamos salgar suas vidas, iluminá-las com a luz do evangelho.

Fontes:

STOTT, John R. W (1927–2011). A mensagem do sermão do monte: contracultura cristã. Tradução de Gordon Chown. 2 ed. São Paulo, ABU Editora, 2007.

MCKNIGHT, Scot. Sermon on the Mount. 1 ed. Grand Rapids, Zondervan, 2013.

BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 1 ed. São Paulo, Mundo Cristão, 2016.

Sermão pregado para a Congregação Presbiteriana da Graça em Santo Antônio de Jesus — Bahia em 11 de Outubro de 2020.

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